ETFs/Bitcoin com compra direta no mercado
A presente semana foi marcada por uma decisão judicial nos EUA: um tribunal de apelações norte-americano decidiu a favor da empresa de investimento em criptomoedas Grayscale, no caso que a opunha à Comissão de Valores Mobiliários (SEC) dos EUA sobre a proposta de admissão à bolsa de um ETF indexado ao preço do Bitcoin.
Segundo o tribunal, a SEC foi incapaz de suportar os seus argumentos na recusa de admitir à bolsa o ETF da gestora de fundos Grayscale, recomendando que revisse a sua posição nesta matéria. A SEC tem agora 45 dias para recorrer da decisão junto dos tribunais norte-americanos.
À primeira vista, a decisão é uma grande vitória para a Grayscale e para a indústria das criptomoedas, e poderia abrir caminho a outros ETFs que utilizam a compra de Bitcoins no mercado como método de indexação, em lugar de contratos Futuros.
Várias outras entidades solicitaram à SEC a admissão de ETFs com o mesmo método de indexação, como a empresa Nasdaq Inc, a empresa gestora da bolsa Nasdaq, e a BlackRock Inc, a maior gestora de ativos do mundo.
A SEC tem repetidamente rejeitado a listagem em bolsa de ETFs com este método de indexação. Por que será?
Contratos Futuros sobre o Bitcoin: o que é?
Em primeiro lugar o que é um contrato Futuro? É um contrato em que as partes acordam comprar ou vender um determinado ativo subjacente, por exemplo, o Bitcoin, em condições pré-definidas (quantidade por contrato, método de liquidação, mínima variação, casas decimais de variação do preço…), cuja liquidação ocorrerá numa data futura a um preço fixado no presente.
Vamos utilizar exemplos para melhor ilustrar. Vamos imaginar que a Bolsa de Futuros cria um contrato Futuro cujo ativo subjacente é o Bitcoin. Seguidamente, determina que cada contrato equivale a 5 Bitcoins e que estará denominado em Euros. Por fim, fixa as várias datas de vencimento: vamos supor as sextas-feiras de cada terceira semana dos meses de março, junho, setembro e dezembro.
No dia 30 de agosto de 2023, vamos supor que o Bitcoin no mercado está a cotar a 26.000 Euros. O investidor A deseja negociar o contrato Futuro de dezembro de 2023, ou seja, irá expirar no dia 22 de dezembro de 2023, faltando 113 dias até ao vencimento. A taxa de juro do Euro, nesse momento, encontra-se em 4%/ano. Desta forma, o contrato Futuro está a cotar a 26.324 Euros (acresce ao preço de mercado, o custo financeiro para esse período).
Este investidor tem em carteira 5 Bitcoins e teme que o preço do Bitcoin desça para 20.000 Euros até ao final de 2023. Assim, decide vender um contrato Futuro com expiração a 22 de dezembro de 2023, ou seja, acorda vender 5 Bitcoins no próximo dia 22 de dezembro de 2023 a 26.324 Euros.
Assumindo que, no dia 22 de dezembro de 2023, o Bitcoin cotava a 21.050 Euros:
- Liquidação física: o investidor A tem de transmitir a propriedade dos seus 5 Bitcoins ao comprador do contrato Futuro; assim, vende os 5 Bitcoins a 26.324 Euros, assegurando o preço que pretendia no final de agosto, isto é, sem a queda esperada, e recebendo 131.620 Euros (26.324 × 5) Euros;
- Liquidação monetária: o investidor A recebe apenas os ganhos obtidos no contrato Futuro do comprador, ou seja, o comprador paga-lhe a diferença entre 26.324 Euros e a cotação do Bitcoin nos mercados, isto é, 21.050 Euros por Bitcoin, recebendo um total de 26.370 Euros ((26.324-21.050) × 5). Neste caso, mantém a propriedade dos seus 5 Bitcoins, mas recebe os ganhos obtidos no contrato Futuro.
Analisemos outro cenário, desta vez, a 22 de dezembro de 2023, o Bitcoin cotava a 27.000 Euros:
- Liquidação física: o investidor A tem de transmitir a propriedade dos seus 5 Bitcoins ao comprador do contrato Futuro. Assim, vende os 5 Bitcoins a 26.324 Euros, assegurando o preço que pretendia no final de agosto e recebendo 131.620 Euros (26.324 × 5). Todavia, ao contrário do esperado, perdeu a oportunidade de poder vendê-los no mercado a 27.000 Euros, uma perda potencial de 3.380 Euros (27.000 – 26.324) × 5).
- Liquidação monetária: o investidor A paga as perdas que resultaram do contrato Futuro ao comprador, ou seja, a diferença entre 27.000 Euros, a cotação do Bitcoin nos mercados, e 26.324 Euros, o preço acordado no momento de abertura do contrato Futuro, 676 Euros por Bitcoin, pagando um total de 3.380 Euros ((27.000 – 26.324) × 5).
O que podemos concluir acerca do exemplo anterior:
- O comprador do contrato Futuro ganha se o preço do Bitcoin sobe nos mercados; perde na situação contrária (se desce);
- O vendedor do contrato Futuro ganha se o preço do Bitcoin desce nos mercados; perde na situação contrária (se sobe);
- No caso da liquidação física, o vendedor tem de transmitir a propriedade dos Bitcoins ao comprador no momento da expiração, ao preço pré-acordado (no momento de abertura do contrato);
- No caso de liquidação monetária, a parte com perdas paga à parte com ganhos – tanto pode ser o comprador ou o vendedor -, havendo apenas o pagamento em Euros das perdas à outra parte.
Existe sempre o risco de as partes não cumprirem as suas obrigações no momento da expiração; ou o vendedor não aparecer com os Bitcoins, ou a parte perdedora não pagar a menos-valia à parte que obteve ganhos.
Tendo em conta isto, as Bolsas de Futuros exigem o depósito de uma margem – podemos chamar caução –, denominada inicial, e uma margem de manutenção durante a vigência do contrato Futuro, um valor mínimo para que o contrato não seja encerrado, caso contrário, a posição do investidor é liquidada – a chamada “margin call”.
Vamos supor que, no nosso exemplo, a Bolsa de Futuros exige 12.500 Euros de margem inicial e 10.000 Euros de margem de manutenção por contrato Futuro. Neste caso, a alavancagem para manter o contrato é 13 vezes (10 mil euros em 131.620 Euros), ou seja, a manutenção do contrato exige uma fração do investimento total: apenas 7,6% da posição – 131.629 Euros).
ETFs que utilizam o método de indexação com contratos Futuros
No caso destes ETFs, que replicam o valor do Bitcoin através da abertura de posições longas em contratos Futuros, ou seja, posições compradoras, no momento da expiração, renovam o contrato Futuro para nova data, por forma a manterem uma exposição longa ao Bitcoin sincronizada com o valor aplicado pelos investidores no ETF.
Vamos imaginar que um dado ETF utiliza o contrato do nosso exemplo, supondo que possui cerca de 120 milhões de Euros dos investidores, de quantos contratos Futuros irá necessitar? Como o contrato está a cotar a 26.324 Euros e cada contrato corresponde a 5 Bitcoins, significa uma exposição de 131.620 Euros. Assim, deverá adquirir aproximadamente 911 contratos: 120 milhões de Euros a dividir por 131.620 Euros. Assim, uma subida do preço do Bitcoin será refletida em ganhos no contrato Futuro e vice-versa.
Para abrir esta posição, o ETF terá de realizar o depósito da margem inicial, no valor de 11.387.500 Euros (12.500 Euros × 911). Ou seja, irá afetar uma pequena fração do dinheiro dos investidores, mas obtendo uma exposição ao mercado semelhante ao valor aplicado pelos investidores.
Importa, no entanto, ter em conta esta realidade: todos os atuais contratos Futuros sobre o Bitcoin são de liquidação monetária. Temos, por exemplo, o contrato Futuro da bolsa de Futuros norte-americana Comex, onde, a liquidação é monetária (Financially Settled), em lugar da liquidação física.
ETFs que utilizam o método de indexação através da compra de Bitcoins no mercado
Estes ETFs tornam a indexação mais complicada, pois necessitam, no nosso exemplo, de aplicar a totalidade dos 120 milhões de Euros dos investidores. Como em várias situações necessitam de manter alguma liquidez, ou seja, uma pequena fração em Euros, para pagar, por exemplo, as comissões ao gestor do fundo, nem todo o dinheiro está 100% aplicado em Bitcoins.
Em conclusão, a indexação com Futuros é mais fácil, no entanto, negativo para o preço do Bitcoin, pois não há uma procura efetiva por Bitcoins, ou seja, não existe qualquer ordem de compra por Bitcoins. Milhões e Milhões deixam de estar aplicados na compra de Bitcoins, não afetando positivamente o valor deste.
Por que se opõe a SEC ao método de indexação através da compra de Bitcoins no mercado?
Desde o final de Bretton Woods, em 1971, que o Dólar norte-americano deixou de ser convertível em Ouro. Para controlar o seu preço, evitando a sua subida, o que daria um sinal de fragilidade do sistema fiat, os Bancos Centrais utilizam o mercado de Futuros para influenciar negativamente o preço do Ouro.
Como o fazem? Recordemo-nos que Dólares norte-americanos (USD) ou Euros não são um problema para os Bancos Centrais, estas entidades podem emitir moeda sem qualquer restrição, apenas o infinito é o limite. Assim, conseguem controlar o preço de qualquer matéria-prima, em particular o Ouro e a Prata, que continuam a ter uma procura monetária e industrial.
Sabem que os grandes fundos utilizam contratos Futuros com liquidação monetária, ou seja, no momento da expiração, não exigem a entrega do Ouro físico, mas apenas um acerto de perdas e ganhos em USDs. Estes fundos, usando a liquidação monetária, obtêm ganhos ou perdas na expiração e renovam as suas posições nos contratos Futuros, sem colocarem qualquer ordem compradora no mercado real. Desta forma, pode ser realizada uma enorme manipulação, através da criação de uma oferta artificial de Ouro no mercado de Futuros, pela abertura de posições vendedoras em contratos Futuros de liquidação monetária – no final, não é necessária a entrega física de nada! As eventuais perdas não são um problema! Existem USDs para cobrir tudo. Na realidade cria-se uma oferta Ouro que simplesmente não existe, não é efetiva.
Bitcoin: uma ameaça ao sistema fiat que importa controlar?
O aparecimento de ETFs que pretendem efetivamente adquirir Bitcoins, sem a utilização de contratos Futuros, reduz o controlo dos Bancos Centrais sobre o preço do Bitcoin, como já anteriormente explicado.
O Bitcoin é uma moeda que não está controlada pelos Governos: não podem alterar a oferta de Bitcoins – são 21 milhões de Bitcoins e ponto final -, não podem manipular o seu preço, exceto se os fundos com indexação através de contratos Futuros atingissem uma dimensão relevante, deixando de haver procura “física” por Bitcoin, através da movimentação de propriedade entre endereços (wallet).
Trata-se da maior reserva de valor da humanidade, pois não permite estímulos monetárias artificiais, nem tão pouco receitas mágicas, onde se imprime dinheiro para resolver todos os problemas.
Tendo em conta esta realidade, para as autoridades é de vital importância controlar o preço do Bitcoin. Para tal, necessitam que grandes fundos, debaixo da sua supervisão, utilizem exclusivamente contratos Futuros como forma de indexação, em lugar da compra de Bitcoins no mercado.
Esta é a verdadeira razão para os enormes obstáculos que se têm colocado ao aparecimento de ETFs com este método de indexação.